Você Prefere Bordeaux ou Borgonha?

Por Renato Nahas

Quando um grupo de enófilos e confrades se reúne para degustar bons vinhos, inevitavelmente o papo, sempre muito animado, gira em torno da bebida. E entre uma taça e outra, ao discutir os vinhos da França, alguém normalmente surge com a fatídica pergunta que mais parece um dilema: “Borgonha ou Bordeaux?”. Essa é a senha para que o grupo se divida em dois, cada qual com argumentos apaixonados na defesa de sua região preferida.

A ideia desse post é fazer uma breve e, acima de tudo, despretensiosa comparação desses dois estilos. E defender a ideia de que, na dúvida, escolha os dois!

Cuidado com os estereótipos!

As duas fotos que abrem esse post foram obtidas numa rápida pesquisa no Google. O navegador mostrou a foto da esquerda para representar Bordeaux. Nela, a ideia é uma vinícola moderna e de um porte razoável, o famoso Château de Bordeaux. A foto da direita, por outro lado, imediatamente sugere tradição e história. Um muro antigo (Clos) cercando um vinhedo pequeno e aclamado, no caso dessa foto o Chevalier-Montrachet, que produz um dos melhores vinhos brancos do mundo.

Vamos explorar esse tema adiante, mas vale desde já registrar que essa visão de moderno versus tradicional não é exatamente a melhor explicação para entender as diferenças entre as duas regiões. Visões preconceituosas em nada ajudam no entendimento e numa boa discussão.

Inegavelmente duas das principais regiões de Vinhos Tintos do mundo

O livro escrito por Peter Yeung e Liz Thach: MW – Marketing dos vinhos de luxo, numa tradução livre, faz um ranking dos principais estilos de vinhos “super premium” no mundo, seguindo critérios muito bem definidos (imagem, preço e avaliação dos críticos dentre outros), em termos de volume.

As duas regiões estão no topo do ranking. Apesar da participação de Bordeaux ser superior no mercado total de vinhos de luxo, vale lembrar que sua área plantada é significativamente maior que a da Borgonha (130 mil hectares em Bordeaux versus apenas 29 mil na Borgonha).

Portanto, a briga entre Bordeaux e Borgonha é o que podemos chamar de “briga de cachorro grande”. Qualquer que seja a escolha, certamente e sem medo de errar, podemos afirmar: o enófilo estará em boas mãos.

Estudar a história é sempre um bom começo

A história de uma região diz muito sobre o vinho que ela produz. Apesar de ambas terem dados os primeiros passos na produção de vinhos através dos romanos, suas trajetórias traçaram caminhos distintos ao longo do tempo.

Até a eclosão da Revolução Francesa, a Borgonha era uma região dominada por nobres e pela igreja. Com a ascensão de Napoleão ao poder, a propriedade dos vinhedos foi fragmentada em parcelas pertencentes a pequenos agricultores . Já em Bordeaux, os vinhedos eram normalmente amplos e pertenciam a empresas, os “Châteaux”. Além disso, desde a ocupação inglesa da região, entre os séculos XII ao XV, os vinhos bordaleses eram largamente exportados, enquanto na Borgonha o quadro era diferente até há algumas décadas atrás. Enquanto historicamente os grandes vinhos de Bordeaux eram destinados aos consumidores mais exigentes do mundo, os da Borgonha eram apreciados por nobres, reis e aficionados.

A Borgonha trilhou o caminho da pesquisa exaustiva do terroir, chegando ao limite de possuir cerca de 2 mil “climats”, que são parcelas de terrenos com características especiais, num processo iniciado pelos monges na idade média. Até meados do século 20, a região era composta por pequenos produtores de uva, que se preocupavam muito mais em produzir seus vinhos, com qualidade, do que a forma como eram comercializado. Havia pouca orientação ao mercado. Os vinhos eram engarrafados por negociantes que se encarregavam da distribuição.

Bordeaux, por seu turno, trilhou uma trajetória diferente. Impulsionada pela localização num importante porto comercial, e a ligação histórica e proximidade com um dos mais importantes mercados consumidores do mundo, a Grã-Bretanha. Nasce daí a inequívoca vocação comercial da região.

Na prática, isso implicou em conceber marcas de vinhos poderosas e, acima de tudo, a capacidade de se comunicar com o mercado. Além disso, Bordeaux foi capaz de adaptar-se, ao longo do tempo, às necessidades e desejos do consumidor. Prova disso é que até o início da década de 1970, Bordeaux produzia mais vinho branco do que tinto. A demanda mudou e a região rapidamente se adaptou ao que o mercado demandava.

Quando se fala em terroir é comum exaltar a complexidade da Borgonha. E faz sentido. Mas é importante ressaltar que o terroir de Bordeaux também é complexo e muito especial, capaz de produzir uma grande quantidade de vinhos (é a maior região produtora de vinhos de qualidade do mundo) sempre num padrão elevado de acordo com o segmento em que atua. É comum dividir os vinhos da região em três grandes sub-regiões: Margem Esquerda, Direita e Entre-deux-Meres. Mas, ainda assim, é uma visão muito consolidada. O fato de existirem 65 AOCs em Bordeaux comprova que há uma enorme quantidade de estilos e isso se deve a diversidade do seu terroir.

As diferenças do terroir de Bordeaux e da Borgonha

Seria muita pretensão querer esgotar esse assunto nesse curto espaço, mas em linhas gerais vale dizer que a trajetória da Borgonha, descrita anteriormente, levou a região a adotar uma postura de perfeccionismo, o que na prática significa uma aposta de “tudo ou nada”.

A filosofia da Borgonha é buscar extrair o melhor do que cada parcela de terreno pode oferecer para a uva com o melhor potencial naquela área, a Pinot Noir. Isso gera uma situação em que, quando as condições climáticas são as ideais (o que não acontece sempre), será difícil encontrar vinho ruim oriundo dos melhores vinhedos da Borgonha. Já quando isso não acontece, “o jogo pode ficar complicado”.  Por essas e outras, a Borgonha é o lugar onde existe o maior risco de gastar muito e beber mal.

Já Bordeaux, pela sua evidente orientação comercial, adotou sempre uma postura de minimizar riscos. Desculpem o termo em inglês, mas Bordeaux opera no “safety mode”.

O clima com influência marítima provoca grande variabilidade nas safras em Bordeaux. Para contornar isso, o uso de blend de uvas, minimiza os riscos da variabilidade. Essa já é uma diferença importante com relação a Borgonha. Mas não é a única. O fato dos grandes Châteaux poderem buscar uvas em diferentes parcelas, de diferentes vinhedos, somado ao fato de existir em conjunto com o “Grand Vin”, o segundo e, muitas vezes o terceiro vinho, permite uma flexibilidade enorme. Nesse sentido é crível afirmar que Bordeaux é muito mais consistente do que a Borgonha.

Na dúvida, opte pelos dois!

Longe de querer resolver o dilema, ou tomar o lado de uma região ou outra, o ponto de partida da discussão que levantamos aqui é que, inegavelmente, Bordeaux e Borgonha merecem estar no “top 5” de qualquer lista que se faça sobre os melhores vinhos tintos do mundo. Seja qual for a opção, o enófilo estará com um grande vinho em sua taça.

Mas o ponto crucial da discussão é que, enquanto a Borgonha é mais imprevisível, Bordeaux é mais estável.

Preço em Bordeaux normalmente anda junto com qualidade, apesar de estar fora de discussão se o salto no preço dos vinhos de maior qualidade é exagerado ou não. Bordeaux sabe muito bem explorar o poder da marca. Enquanto os melhores vinhos da Borgonha são caros porque fundamentalmente são produzidos em pequenas quantidades, em Bordeaux os produtores sabem explorar o poder de suas marcas e cobrarem caro por isso, mesmo produzindo em grande quantidade!

Além disso, na Borgonha, a opção de produzir seus vinhos de maior qualidade, sempre a partir de pequenos vinhedos e de uma única uva, torna o risco mais elevado. Ou dá muito certo, ou não dá certo! Naturalmente a classificação dos vinhedos e, principalmente o produtor por trás do vinho, podem ajudar a minimizar esse risco. Mas ainda assim ele existe. Já Bordeaux possui mais ferramentas para contornar safras não tão boas, tais como blend de uvas, segundo e terceiro vinho, uvas oriundas de diferentes vinhedos. É portanto, muito mais consistente.

E assim concluímos sem uma solução para o dilema. A resposta depende de uma série de fatores, dentre os quais o gosto pessoal tem o maior peso na resposta. Como sempre, conhecimento e informação podem fazer a diferença. E na dúvida, fique com os dois.

E você, prefere Borgonha ou Bordeaux? Deixe sua resposta nos comentários!

Renato Nahas é Sommelier formado pela ABS-SP e Professor nos cursos de Introdução ao Mundo de Vinho e Formação de Sommelier Profissional na ABS-Campinas. Obteve a Certificação Master Level em Borgonha, pela WSG, além da  FWS, IWS, SWS, CSW e WSET3. Além disso é Formador Homologado de Jerez.

18 comentários em “Você Prefere Bordeaux ou Borgonha?

  1. Mestre Renato, isso foi uma aula! Parabéns pelo artigo. Confesso que tenho bebido pouco vinhos franceses, mas para o meu paladar, quando se trata de vinho mais encorpado, prefiro os tintos de Bordeaux. Já os Pinot Noir e Chardonnay, os de Borgonha são incríveis! Abração

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  2. mais ou menos a pergunta “tirar o canino esquerdo ou o direito”. 2 regiões fantásticas e de difícil acesso financeiro a boas oportunidades. Borgonha acho mais difícil saber se está comprando algo bom do que bordeaux…é impossível entender os rótulos…

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  3. Demorei a ler esse post porque os textos do Nahas têm que ser degustados com calma e atenção. Excelente artigo, que traz à reflexão algumas diferenças para as quais nunca havia me atentado. Parabéns!

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  4. Reconhecendo a autenticidade do “dilema”, mas colocando o gosto pessoal, prefiro Bordeaux, tranquilamente, diante da simples razão de que não tenho apreço por PInot Noir … não bebi Romanée Conti, mas não acredito que esse vinho poderia mudar minha opinião

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