Os Villages “Menos Caros” da Borgonha

Conhecida por produzir alguns dos vinhos mais aclamados e icônicos do mundo, a Borgonha é complicada, confusa e muito complexa. Mas é apaixonante.

A região concentra menos de 4% da área plantada de vinhedos na França e é extremamente fragmentada. Prova disso são as 84 Apelações de Origem Protegidas (AOP) que representam 23% de toda a França. É uma quantidade enorme de pequenas Apelações, o que por si só já se constitui num enorme desafio de memorização. E tudo fica ainda mais complicado porque muitos dos nomes são compostos, com sufixos misturando o nome de uma vila com um vinhedo, numa grafia estranha para quem não domina a língua francesa.

A quantidade de produtores é imensa. Em 2018 eram 3.949 vinícolas, ou “Domaines” como são conhecidas por lá. A média da área plantada das vinícolas na Borgonha é de apenas 6,5 hectares, uma ínfima parte de outras regiões, como por exemplo Bordeaux. Além disso existem ainda 19 Cooperativas e cerca de 400 negociantes, que são produtores que compram as uvas, ou vinhos em barril, de terceiros, engarrafam e comercializam com seus respectivos nomes. Por fim, um terço de todos os vinhedos da região é alugado.

Mas as complicações não param aí. Existem mais de 1.200 parcelas de terrenos. Para cerca de 400 delas foi atribuído um nome e para outras não. Mas muitas vezes encontramos na bibliografia e nas fichas técnicas dos vinhos menções a essas parcelas, conhecidas como climats, sem qualquer referência, o que dificulta o entendimento de um leigo.

Todo esse registro dos vinhedos e terrenos foi iniciado pelos Monges na idade média. Os Monges obviamente não dispunham dos conhecimentos de geologia que conhecemos hoje. Eles não faziam ideia que estavam numa paisagem fraturada, gerada durante a última elevação continental que criou os Alpes. Mas o que importa é que eles reconheciam que parcelas de terrenos diferentes produziam uvas que geravam vinhos diferentes e, pacientemente, classificaram os terrenos, de acordo com a qualidade da uva produzida. E é espantoso que, séculos depois, o avanço da ciência comprovou o acerto do mapeamento empírico feito por esses religiosos na idade média.

Enfim, fragmentação é uma das características fundamentais da Borgonha. E sim, a região é complexa, confusa e difícil. Mas além disso há uma outra variável que marca a Borgonha: preços elevados. Em 2015, dos 50 vinhos mais caros do mundo, 38 eram da Borgonha. Outro indicador que impressiona é que, uma em cada duas garrafas produzidas, são exportadas. Isso reflete a elevada procura e o impacto sobre os preços é uma consequência. E explica situações surreais como a de encontrar um mesmo vinho em Nova Iorque mais barato do que na própria Borgonha.

E se você não abandou a leitura até aqui, vale dizer que apesar de toda essa complexidade, a Borgonha produz os vinhos mais elegantes do mundo e capazes de emocionar e tocar o coração do amante do vinho. Nesse artigo, vamos apresentar 5 Villages da Côte D’Or menos conhecidos e que podem ser fontes de vinhos a preços menores (ou menos altos) do que a média da região.

Mas vale um alerta. Quando se procura vinhos de preços atraentes na Borgonha, geralmente o caminho percorrido é evitar, ou fugir, da Côte D’Or, a área mais nobre da região. Nesse artigo não vamos trilhar esse caminho. Iremos concentrar as buscas de oportunidades na Côte D’Or. Outras regiões, consideradas menos nobres, como o Maconnais e a Côte Chalonaise também oferecem boas oportunidades, porém explora-las ficará para uma próxima ocasião.

Esses cinco Villages que iremos abordar nesse artigo são conhecidos na literatura e artigos especializados como os “Value Villages”, algo que numa tradução livre seria “Villages de preços atraentes”. Esse termo começou a ser usado há 10-20 anos atrás, quando as diferenças de preço eram maiores do que são hoje. Atualmente, talvez eles não sejam mais tão desconhecidos como eram há tempos atrás e, muito menos os preços ainda sejam tão atraentes. Mas ainda assim vale a garimpagem.

Então vamos a eles. Os 5 Villages pouco conhecidos e que merecem a atenção são: Monthélie, Auxey-Duresses, Saint-Roman, Saint-Aubin e Santenay . Todos estão localizados na Côte de Beaune, que junto com a Côte de Nuit, formam a Côte D’Or, onde indiscutivelmente são produzidos os melhores Pinot Noir e Chardonnay do mundo. Vamos descrever cada uma deles e deixar algumas dicas de Climats, geralmente Premier Crus (afinal não há Grand Crus nesses Villages) e produtores que valem a pena serem conhecidos.

O primeiro Village que iremos abordar é Monthélie.

Ao trafegar a rodovia D973, que segue caprichosamente os vinhedos da Côte D’Or, é possível avistar a bela vila de Monthélie, situada na encosta acima de Meursault. E a Oeste fica Auxey-Duresses.

Com apenas 139 hectares de área cultivada é um dos menores vinhedos da Borgonha. 30% da área cultivada é classificada como Premier Cru e produz majoritariamente tintos, 87% do total. Abriga 15 Premier Crus, sendo que 4 deles são mais significativos e encontrados no mercado: Sur la Velle, Les Champs Fulliot, Les Duresses e Les Clos.

Sur la Velle e Les Champs Fulliot são vizinhos de Volnay. Les Duresses e Les Clos, são próximos de Auxey-Duresses. O estilo do vinho, como seria de se esperar, varia de acordo com o vizinho

De uma forma geral o Tinto de Monthélie costuma ser austero quando jovem. Além disso, a acidez e elevada e os taninos de médios para alto, mas com fruta de perfil mais madura e com boa intensidade de sabor. Os vinhedos localizados ao lado de Volnay, apresentam vinhos com aromas de cereja vermelha, morango, mas sem a complexidade e o charme do vizinho ilustre. Do lado de Auxey-Duresses, os vinhos são terrosos e menos distintos, assim como mostram menos fruta.

Com relaçãos produtores, merecem destaque: Comte Lafons (o grande produtor de Meursault),  Didier Darviot-Perrin, Domaine Suremain, Monthélie-Douhairet-Porcheret e Remi Joubard.

A vila de Auxey teve o nome de seu principal vinhedo, Duresses, adicionado ao seu em 1930 e passou a se chamar Auxey-Duresse. Tem uma pequena área plantada – 169,3 hectares – e seus vinhedos estão claramente divididos em 3 áreas diferentes, proporcionando a produção de tintos e brancos de estilos diferentes e interessantes. Os Tintos representam 66% da área plantada e os Brancos, 34%.

Uma curiosidade é que nesse Village situa-se a Maison Leroy, uma das mais conhecidas e badaladas vinícolas da Borgonha.

Os Tintos dessa área são difíceis de serem definidos. Assim como a qualidade. Conhecer o produtor pode fazer toda diferença.  Observa-se dois estilos distintos. O primeiro costuma ser potente e robusto, com aromas de frutas vermelhas silvestres. O segundo estilo é variado, algumas vezes macios e frutados. Em comum, ambos se caracterizam pela rusticidade.

Os Brancos de Auxey-Duresse são mais interessantes que os tintos. E aqui reside a grande oportunidade de boa relação de preço vs qualidade da região. São muitas vezes chamados de “Meursault Junior”, uma clara alusão ao vizinho ilustre. Mostram aromas de avelã e flor de limão. São redondos e untuosos.

Há 9 Premier Crus nesse Villagem. Dois merecem destaque: Clos de Val, que é um monopólio da Família Prunier e Duresses, que foi o vinhedo escolhido para ser anexado ao nome da vila.

O grande produtor da área é o Domaine Gilles & Jean Lafouge. Outros que merecem menção são: Michel Prunier et Fille e J-P & Christophe Diconne. Por fim, a Maison Leroy apesar de produzir pouco, tem sua sede na cidade não deixar de ser citada.

Promovida a categoria de Village em 1947, Saint-Romain tem  135 hectares de vinhedos, o que a coloca como uma das menores áreas produtoras da Borgonha. Assim como Chorey-les-Beaune, não possui nenhum vinhedo Premier Cru. São os dois únicos villages da Côte de Beaune nessa condição.

Saint-Romain é separada em duas áreas distintas, uma no alto da encosta e outra no vale. Duas características marcantes são: solos com elevado índice de calcário e a altitude. Tudo isso favorece os brancos, que aliás é o ponto alto desse Village. Representam 60% do volume produzido e apresentam mineralidade elevada e acidez cortante. Não é à toa que muitos o comparam a um Chablis jovem. Para quem aprecia este estilo, de acidez cortante, é uma boa opção a preços convidativos.

Já os tintos, que representam 40% da produção, não são muito atraentes. O solo rico em calcário, e altitude elevada, não favorecem a melhor expressão da Pinot Noir. São vinhos com pouco corpo, elevada acidez, licor de cereja no aroma, além de toques vegetais e pungência. Tudo isso combinado confere ao vinho um indesejado caráter de rusticidade.

Quanto aos produtores de destaque, encabeça a lista o Domaine D’Auvenay (Bize-Laroy). Porém os preços desse produtor refletem seu prestígio e são portanto elevadíssimos. Outras opções, com melhor relação de preço e qualidade, são o Domaine Alain Gras e o Thevenin-Monthélie.

Saint-Aubin está localizada num local promissor: atrás da icônica e belíssima colina de Montrachet, a oeste, local dos melhores Chardonnays produzidos no mundo (Puligny e Chassagne). É a quarta maior área produtora de vinhos brancos na Côte D’Or, com 236 hectares de vinhedo.

A qualidade de Saint-Aubin pode ser ilustrada pelo fato de 76% de sua área ser composta de parcelas Premier Crus. Com relação a seus vizinhos ilustres , há o compartilhamento dos mesmos solos e a diferença cabe a elevação e exposição solar. Assim não é de se estranhar que o ponto forte desse Village sejam os brancos, que representam 80% da produção. São vinhos frescos, “crisp”, mas com bom corpo e elevada intensidade de sabor, quando jovens. Isso é um sinal de qualidade e capacidade de evolução com o tempo. Atingem seu auge em 5 anos com aromas de limão confitado, amendoado e toques terrosos.

Já os Tintos são elegantes e de corpo médio, com aromas minerais, cereja e morango. Não são muito complexos e atingem seu melhor entre 5-8 anos.

Os melhores Premier Crus dos Brancos localizam-se, como seria de se esperar, próximos da Colina de Montrachet. Merecem destaque: Les Charmois, En Remmily e Les Mugers des Dents de Chiens

Já os melhores Premiere Crus de Tintos são: Les Castets, Les Frionnes, Sur le Sentier du Clou e Le Chatenière.

Os melhores produtores do Village são: Hubert Lamy, Henri Prudhon, Marc Colin e Gérard Thomas

E por fim chegamos ao 5º Village dessa lista: Santenay, que é considerado o extremo sul da Côte D’Or, apesar de Cheilly-les Maranges ficar ainda mais ao sul. É uma cidade muito simpática, com atrações turísticas que incluem uma antiga terma romana e um cassino.

A cidade é composta por duas partes, separadas por uma colina (quase um paredão) de vinhedos. O nome dessas duas áreas é sugestivo: Santenay-le-Bas (“de baixo”) e Santenay-le-haut (“de cima”).

Apresenta um solo muito vigoroso e para contornar isso, os viticultores usam um método de condução “suis generis”, o Cordon de Royat. Esse método limita o vigor, atrasa a colheita e espalha os cachos, criando melhores condições para a fotossíntese e amadurecimento.

Apesar de existirem 11 Premier Crus, o mercado só costuma enxergar 5: La Comme, Clos de Tavannes, Les Gravières, La Maladière e Clos Rosseau.

Os Tintos são majoritários, respondendo por quase 90% do total. Com relação ao estilo, Clos de Tavannes e Les Gravières são muitas vezes comparados a um bom Volnay, pela elegância e fruta. La Comme lembra mais um Pommard pela estrutura e um toque de rusticidade. Já o La Maladière – elegante, frutado e menos estrutura.

Os principais produtores de Santenay são: Roger Belland, Lucien Mugnard&Fils e Jean-Marc-Vicent.

Enfim, como foi dito no início a Borgonha é complicada, confusa e complexa. Porém desbrava-la pode nos levar a experiências inigualáveis no mundo do vinho. E vale aquela máxima: “Ao final do arco-íris há um pote de ouro”. Espero que você encontre o seu pote de ouro e seja muito feliz. Cheers !

Renato Nahas é apaixonado pela Borgonha e está há anos tentando entende-la. No começo foi difícil, mas cada dia tem se tornado ainda mais difícil. É candidato ao Bourgone Master-Level Program da WSG na França. É Sommelier formado pela ABS e Formador Homologado pelo Consejo Regulador del Vino de Jerez. Além disso, conquistou as seguintes certificações internacionais: FWE, CWS e WSET3.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

18 comentários em “Os Villages “Menos Caros” da Borgonha

  1. Espetacular contribuição. Eu me sinto muito confuso com tantas apelações e produtores da França, nas me sinto muito confortável quando um nome como o de Nahas com todo seu conhecimento ainda se vê em aprendizado. Nunca será fácil e em certo momento quase desisti de buscar vinhos franceses, recentemnte a cada 4 que compro procuro um Francês de bom RPB ( tarefa quase impossível no Brasil) mas o faço !! Bela matéria, parabéns Sitta e agradeço mais está oportunidade .

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